Nota Pública
Acerca dos fatos ocorridos na noite da última quinta-feira, 02/06, envolvendo duas crianças de 10 e 11 anos e dois policiais militares, cuja ação desastrosa culminou na morte de Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, de 10 anos, o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDECA Interlagos manifesta o quanto segue.
Inicialmente, é pertinente ter em mente que:
(i) Todos são iguais perante a lei e a todos é garantido o direito à vida, à igualdade e à segurança;
(ii) Toda criança deve ter prioridade absoluta na realização do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária e ser colocada a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão, cabendo à família, sociedade ao Estado assegurar isso e
(iii) O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, mediante políticas específicas;
(iv) É vedada toda a forma de trabalho ao adolescente com idade inferior a 14 anos de idade.
Evocar tais preceitos constitucionais torna ainda mais flagrante à incompetência do Estado em garantir que princípios sejam observados e direitos realizados no caso em tela. Voltar os olhos para a curta trajetória de vida das duas crianças é confirmar essa assertiva, haja vista serem inúmeras as violações e violências presentes em suas vidas. Por incrível que pareça, o mais grave não é o cenário de violação de direitos, em verdade, o inaceitável é a incapacidade do Estado em identificar essa situação, acionar os atores do Sistema de Garantia de Direitos e garantir a efetivação dos mesmos. Afinal, o Sistema de Garantia de Direitos é composto por uma [suposta] integrada e articulada rede de serviços, cujo objetivo é, senão, a efetivação de instrumentos normativos e funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente.
Especificamente nesse caso, o Estado falhou. Com a evasão escolar de Ítalo, que não ia à escola desde o início do ano. No fato que ambas as crianças, de 10 e 11 anos trabalhavam como engraxates no aeroporto de Congonhas. Com a ruptura dos vínculos familiares de ambas as crianças, sendo que tinham passagem por instituições de acolhimento institucional e, especificamente Ítalo, já havia desaparecido duas vezes e sido encaminhado aos Conselhos Tutelares do Ipiranga e Grajaú. Ao não atuar de forma consequente na aplicação de uma medida protetiva, que visasse ao restabelecimento de tais vínculos comunitários, haja vista terem as crianças, no passado, realizado pequenos furtos.
Para o CEDECA Interlagos a ação policial na noite do dia 2 de junho foi apenas o ápice de um extenso processo de violação de direitos e descaso por parte do Poder Público, que culminou na morte de Ítalo. Ao invés de garantir às crianças acesso a serviços que visassem o restabelecimento de dignas e plenas condições de vida, o Estado a elas dispensou tratamento violento e não condizente com os preceitos constitucionais que fundamentam o Estado Democrático de Direitos brasileiro. Tanto a ação quanto a versão apresentada pela Polícia Militar são desastrosas e graves, haja vista que do vídeo de câmeras de segurança vinculado pela Rede Globo no dia 3 de junho1 é possível depreender que a versão apresentada em nota oficial pela Polícia Militar – de acordo com a qual Ítalo, de 10 anos, estaria, concomitantemente, dirigindo e desferindo 3 tiros contra uma viatura e moto da PM – é um tanto fantasiosa. Igualmente grave e ilegal a conduta policial após o ocorrido, já que, em atuação estranha à de policial militar, os dois membros da corporação inquiriram e filmaram a criança de 11 anos, ainda na viatura. Questionamo-nos, ainda, se, e de que forma o Conselho Tutelar acompanhou a condução desta última à delegacia. E se, segue acompanhando o caso, no qual existem fortes indícios de desrespeito aos direitos da criança e do adolescente.
Com enorme preocupação, este Centro de Defesa permanece atento aos desdobramentos deste caso. Especialmente no tratamento dispensado a criança de 11 anos que, em três depoimentos prestados à polícia, contou com a presença de sua mãe e uma psicóloga apenas no último deles.
Tendo isso em mente, o CEDECA Interlagos expressa repúdio ao mesmo tempo à atuação da Polícia Militar, e inação do Estado, conforme incapacidade de assegurar a realização de direitos das duas crianças. Enquanto a morte de uma criança pelas forças da Segurança Pública não provocar indignação da sociedade e do Poder Público, que a deveriam ter acolhido, muitos Ítalos estamparão as capas de jornais.
São Paulo, 7 de junho de 2016.
Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlagos (CEDECA Interlagos).