O Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, a Associação Nacional dos Centros de Defesa (ANCED), e a Rede ECPAT Brasil, vem a público manifestar seu  repúdio à recente decisão proferida pela quinta turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu que não configurou estupro de vulnerável, o relacionamento de um homem de 20 anos com uma menina de 12 anos, tendo dentre as consequências a gravidez da adolescente.  

 A decisão do STJ, além de relativizar o crime de estupro contra crianças e adolescentes, mostra-se eivada de ilegalidades e inconstitucionalidades, posto que afronta as mais elementares normas e princípios instituídos pelo ordenamento jurídico brasileiro, com respaldo na normativa internacional, no sentido da proteção integral de crianças e adolescentes, prometida já pelo art. 1º, da Lei nº. 8.069/90 (o Estatuto da Criança e do Adolescente) e reproduzida pelo art. 100, par. Único, inciso II, do mesmo Diploma Legal, que por ser decorrente do comando supremo emanado do art. 227, caput, da Constituição Federal, serve de verdadeiro “norte interpretativo” a toda e qualquer intervenção estatal em matéria de infância e adolescência, inclusive no que diz respeito à interpretação e aplicação das normas penais relativas a crimes contra crianças e adolescentes, notadamente o art. 217-A do Código Penal, que considera crime de “estupro de vulnerável” a prática de qualquer ato libidinoso contra pessoas de idade inferior a 14 (quatorze) anos, independentemente de seu consentimento ou conduta.  Cabe referir também que a decisão é contrária a própria Súmula 593 da referida corte, que considera “[…] irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”. (Súmula 593 do STJ, 2017). E a Lei nº 13.718/2018, que acrescentou o parágrafo 5º ao art. 217-A, estabeleceu que “as penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”, consolidou o entendimento do STF presente na Súmula 593.

Importante ressaltar que a gravidez em criança e adolescente, por si só, já configura a violação de um direito fundamental, e sua interrupção nos casos de estupro de vulnerável é direito humano, garantido expressamente no art. 128, inciso II, do Código Penal brasileiro, sem qualquer condicionante temporal ou qualitativa, e deve ser compreendida prima facie como o curso de ação que mais se adequa ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

A Constituição Federal de 1988,  art. 227, §4º, assegura de maneira expressa que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”, sendo dever de todos – e em especial, é claro, do Poder Judiciário, salvaguardar os direitos ao respeito e à dignidade de crianças e adolescentes, colocando-as a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 

Além disso, cabe ressaltar o preconceito de gênero presente na decisão do STJ acerca do estupro da menina de 12 anos e o retrocesso que representa, tendo em vista que retroage no reconhecimento do direito à igualdade de meninas e mulheres. Em publicação de 2023(1), o mesmo STJ afirmou ter ciência “de que as influências do patriarcado, do machismo, do sexismo, do racismo e da homofobia são transversais a todas as áreas do direito, produzindo efeitos na sua interpretação e aplicação”.

Por tudo isso, rechaçamos a mencionada decisão, uma vez que vai de encontro aos princípios norteadores dos direitos da criança e do adolescente, em especial o da prioridade absoluta, o do melhor interesse e o da dignidade da pessoa humana, os quais concretizam a doutrina da proteção integral. 

 

 (1)Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/05032023-Julgamento-com-perspectiva-de-genero-representa-avanco-no-reconhecimento-do-direito-a-igualdade.aspx   

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